O ESTATUTO DAS CIDADES 2001 - O GRANDE AVANÇO
URBANISMO E EVOLUÇÃO DAS CIDADES
RONALDO ALVES*
A luta por uma nova visão das cidades e de planejamento vem de longe. Em 1988, a Constituição do Brasil estabeleceu uma nova política urbana para o país, mas só 13 anos depois, em 2001, os instrumentos para implementar essa política foram regulamentados com a aprovação do projeto de lei, originariamente proposto pelo senador Pompeu de Souza e largamente negociado por vários segmentos sociais: o Estatuto da Cidade. A partir do Estatuto da Cidade rompe-se com esta prática que sempre prevaleceu, de que o Plano Diretor é instrumento exclusivamente técnico, dominado somente por engenheiros, arquitetos, geógrafos e “sábios” que com seus conhecimentos iriam organizar a cidade ideal. O Plano Diretor é a principal lei do município que trata da organização e ocupação do seu território. Mais do que isso, no Estatuto da Cidade o Plano Diretor é resultado de um processo político, dinâmico e participativo que mobiliza o conjunto da sociedade, todos os segmentos sociais, para discutir e estabelecer um pacto sobre o projeto de desenvolvimento do município. Este é um processo político de formação da cidadania.
Na redemocratização um conjunto de participantes como entidades de luta pela moradia, sindicatos de trabalhadores, entidades técnicas, acadêmicas, entre outros, impulsionou um movimento para inserir na Constituição um capítulo de política urbana no qual se consagram os princípios da reforma urbana, especialmente o conceito de função social da propriedade.
Este conceito é inovador no entendimento de que a propriedade deve cumprir uma função social, o que se aplica tanto para áreas urbanas quanto para zonas rurais: a propriedade tem de ser produtiva, socialmente útil, isto é, que garanta o pleno exercício do direito à cidade por todos os seus habitantes.
Portanto, é o Plano Diretor que tem de dizer qual é a destinação de cada pedaço do território do município. A ocupação de todas as áreas deverá considerar o bem-estar coletivo, de todos os habitantes do município, seja ela residência, comércio, indústria, serviços, área pública, área para equipamentos coletivos.
No entanto, a prevalência do caráter autoritário e excludente do desenho das cidades se deu, principalmente, pela falta de acesso dos segmentos de menor renda à moradia digna, aos equipamentos, serviços e infraestrutura urbana, enfim ao direito à cidade. Com isto, os imediatamente mais interessados, com interesses concretos em valorizar suas áreas, em garantir seus direitos imobiliários que sempre predominaram nas cidades brasileiras, sempre “de poucos e para poucos”, excluíram a maioria, jogando-a para a periferia.
Infelizmente, o mercado imobiliário no Brasil continua trabalhando apenas para as classes média e alta, uma parcela pequena na pirâmide social das cidades. E mesmo já donas de amplas moradias, a elas são oferecidos mais e mais lançamentos imobiliários, que são adquiridos como “investimento”. Afinal, imóvel não desvaloriza. Resultado: grande estoque de imóveis vazios e de outro lado, o déficit habitacional que continua predominante.
Como dividir
Mesmo os segmentos sociais que não dominam o linguajar técnico, que esconde muito da natureza do processo, acabam entendendo que o Plano Diretor trata de definir “quem vai ficar com o quê” nas cidades: é um espaço de disputa. Quem fica com a parte urbanizada, com infra-estrutura, arborizada, legalizada, com as melhores condições de habitabilidade? E as experiências mostram que é uma disputa muito acirrada, quando o que está em jogo começa a aparecer. E começa a aparecer o que está em jogo. Na discussão, por exemplo, sobre o uso da orla marítima. Aumentar o gabarito? Criar espaços públicos de lazer? Se permitir hotéis? E moradia? Onde estão as áreas mais valorizadas, com melhores condições de habitar, de implantar um determinado tipo de comércio? Os espaços comerciais devem ser para grandes, médios ou pequenos empreendimentos? Se está permitindo shopping centers? Em qualquer lugar? Posto de gasolina nas áreas mais valorizadas da cidade? Não está reservando áreas para moradias populares nas áreas centrais onde existe maior possibilidade de emprego e maior acessibilidade? Daí os conflitos começam a aparecer, a se desnudarem. Em 2003 foi criado o Ministério das Cidades, exatamente para começar a enfrentar este problema, dando uma nova dimensão, escala e sentido ao planejamento urbano no País. Por isso, uma das tarefas principais do Ministério das Cidades ao ser criado foi botar na rua o Estatuto da Cidade disseminando a idéia de uma cidade de todos. Era o momento de fazer chegar a cada um dos 1.700 municípios o conhecimento e a potencialidade do Plano Diretor como instrumento de planejamento e gestão do território. O momento de se aplicar o Estatuto foi a oportunidade de transformar a elaboração do Plano num processo democrático. No qual a população pensa e discute a cidade onde mora, trabalha e sonha, e faz propostas para corrigir as distorções existentes no desenvolvimento do município. O Ministério não queria que se repetisse o que ocorreu na década de 1970, em razão da exigência de que as prefeituras só receberiam recursos federais se tivessem um Plano Diretor. Para continuarem recebendo, o que se viu foi um festival de planos feitos por atacado e vendidos por consultores a administradores coniventes ou inexperientes. Isso produzia documentos que ignoravam a realidade e necessidades de cada cidade. E tinha coisas absurdas como a de vários planos iguais: o município era do interior e tinha um capítulo sobre as praias, porque copiou de outro. Era “normal” encontrar no meio do plano de uma cidade, o nome trocado pelo nome da cidade que primeiro criou o documento. Diversidade regional Cada cidade tem suas questões mais importantes, suas particularidades. Por exemplo, uma cidade pequena que vem perdendo população por falta de perspectivas de futuro, deverá elaborar um Plano Diretor que defina alternativas para que a população permaneça lá, e gere opções para o seu desenvolvimento. Já uma cidade histórica que tem em seu patrimônio artístico e histórico uma riqueza a ser preservada, mas que dia após dia está sendo degradado pelo abandono ou pelas tentativas de substituí-lo por prédios modernos e mais altos, deverá buscar um Plano Diretor que concilie as duas tendências. Outra cidade pode ter um problema de crescimento acelerado provocando a destruição de seu meio ambiente e a disseminação de assentamentos precários. Para esta cidade, o tema da regularização fundiária aliada à recuperação ambiental é fundamental! Na prática, o que se inova com o advento do Estatuto da Cidade, é o chamamento da população para discutir e/ou definir as alternativas para esses contextos locais diferenciados. Estes exemplos, a diversidade dos contextos e da definição dos temas prioritários, são fundamentais para a elaboração de um Plano Diretor. E o quanto é importante que sejam visualizados, entendidos e definidos pelos seus habitantes. O foco das atenções, da busca de soluções e alternativas para minimizar os problemas e potencializar o que de melhor tem cada uma dessas cidades, deverá ser uma construção coletiva. Assim cada cidade tem seu próprio tema, seu próprio Plano Diretor.
Continuaremos na próxima semana enfocando os instrumentos criados pelo Estatuto das Cidades para ordenar e sustentar as ações administrativas e jurídicas que devam constar do Plano Diretor.
* Ronaldo Alves é Arquiteto e Urbanista
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